Sobre Retruco e Orquestra, cavalos da raça brasileiro de hipismo, um menino de 10 anos e uma garota de sete passeiam pelo 4º Regimento de Polícia Montada, em Porto Alegre. Os dois estão acompanhados de policiais militares, que conduzem os animais pelo cabresto, e de uma médica do Instituto-Geral de Perícias (IGP). A cena integra uma técnica pioneira, desenvolvida no Rio Grande do Sul, para coletar de forma menos traumática depoimentos de crianças testemunhas de crimes.
Desenvolvido há três anos, o projeto passou a ter sessões mensais no segundo semestre de 2019. Neste período, uma cena marcou o alcance que o trabalho poderia ter. Traumatizada, uma das crianças não permitia que nenhum estranho se aproximasse. Isso incluía os peritos, que precisariam ouvir seu relato sobre o caso que havia presenciado. Para tentar vencer a distância, o menino foi levado para o 4º RPMon. Por cerca de uma hora, manteve-se quieto e afastado do cavalo.
Demonstrava medo de montar. Aos poucos, o animal foi se aproximando, até deixar a cabeça descansar no colo do garoto, que correspondeu com afeto. O gesto demonstrava que a barreira do silêncio começava a ser vencida.
— Eles chegam muito destruídos, fragilizados. Ele estava totalmente fechado. O cavalo fez o trabalho. É como se o animal dissesse: estou aqui para te ajudar. É um vínculo que ela vai acabar refazendo com os humanos, mas nesse momento precisa fazer com aquele animal. Isso foi fundamental. Essa criança a gente ganhou — descreve a chefe do setor de perícias psíquicas do Departamento Médico Legal (DML) do IGP, Angelita Maria Ferreira Machado Rios.
Esse trabalho proporciona a médio e longo prazo um reinventar-se. É praticamente quebrar esse ciclo de violência. Essa violência que elas passaram, onde tu perdes algumas referências. Ao longo do tempo, elas passam a ter esperança, objetivo.
Segundo a perita, os cavalos servem como facilitadores, pois permitem desenvolver as emoções da criança. Ela passa a confiar no animal e assume responsabilidade sobre ele. Isso é importante para que tenha condições de logo depois relatar o que presenciou. As cinco crianças atendidas dessa forma eram testemunhas de crimes envolvendo violência doméstica. Entre eles, casos de feminicídios, onde a mãe foi assassinada. O filho é, por vezes, o único a presenciar a morte e precisa lidar com isso.
— A perícia trabalha uma evocação de memórias traumáticas e, às vezes, de um tempo bastante longo. Esse momento que elas passam aqui trabalha várias questões emocionais e fortalece a autoestima. Isso torna a criança um pouco mais forte. Esse testemunho fica muito mais robusto. Resumindo: a prova pericial se torna mais forte — avalia Angelita, única perita a cavalgar junto das crianças nas sessões.
O plano agora, segundo o comandante do 4º RPMon, tenente-coronel José Carlos Pacheco Ferreira é, além de manter o atendimento para as testemunhas de crimes, estender o trabalho e oferecer equoterapia para portadores de necessidades especiais.
— Andar a cavalo traz muitos benefícios seja na questão emocional, como no equilíbrio da criança. Ela também cria um vínculo com o animal e com o policial — afirma o oficial.
Superar
Desde o início do segundo semestre de 2019, decidiu-se manter o atendimento mesmo após a criança já ter sido ouvida pela perícia. Elas participam de sessões mensais, onde têm contato com o animal. É uma forma de ajudar a criança a se recuperar do trauma. É o caso de Bianca*, a menina de sete anos que acordou com o corpo da mãe ao lado dela. A mulher havia sido assassinada. O autor do crime, que é o pai da criança segundo a polícia, está preso.
— Tem dias que está mais para baixo. Não aceita falar. É muito difícil. Aqui ela fica muito feliz. Isso tem ajudado a superar. Ela quer até levar a Orquestra para casa — conta a avó.
No início, a menina alternava momentos em que estava alegre ao lado do animal e outros em que demonstrava tristeza. O comportamento da égua também se alterava. A forma como o animal se comporta permite compreender como está o emocional da criança e qual tipo de serviço ela necessita ser encaminhada.
— O cavalo é animal muito sensível. É um espelho dos nossos sentimentos. Acontece essa troca de energia, que também é importante para a criança — explica o capitão Rodrigo Fausto Mendes, comandante do 2º esquadrão do 4º RPMon.
As sessões também são forma de distração para a idosa, que tenta se reerguer do trauma de perder a filha. Orgulhosa da neta sobre o cavalo, usa o celular para fotografar a menina. Bianca acaricia o pescoço e a cabeça da égua com gestos delicados, logo após alimentá-la.
— Posso escovar ela? — pergunta empolgada.
A menina recebe uma escova das mãos do policial. O garoto também é incentivado a ajudá-la. Um em cada lado, escovam o animal. Assim que se encerra a tarefa, Bianca caminha até os avós, de mãos dadas com a perita. A garota abraça a médica antes de pegar o cachorrinho da família no colo.
— Esse trabalho proporciona a médio e longo prazo um reinventar-se. É praticamente quebrar esse ciclo de violência. Essa violência que elas passaram, onde tu perdes algumas referências. Ao longo do tempo, elas passam a ter esperança, objetivo. É esse olhar de futuro que esse trabalho acaba fornecendo — afirma Angelita.
Bianca, segundo os avós, já tem um sonho: diz que vai ser policial.
*O nome usado na reportagem é fictício. Não são divulgados detalhes sobre os casos, para proteger as crianças.
Como funciona o projeto
A criança é encaminhada ao 4º Regimento de Polícia Montada. Um cavalo, de comportamento dócil, é escolhido para que ela conviva com ele. O mesmo animal acompanhará toda a criança em todas as sessões.
A criança ajuda na preparação do animal e depois aprende a montar. O tratador, um policial militar, conduz o cavalo, enquanto a criança está montada. A perita do IGP acompanha, também andando a cavalo. Durante essa parte da sessão, eles conversam sobre outros temas.
Na sequência, a criança é levada pelo perito para o acolhimento no Centro de Referência no Atendimento Infanto Juvenil (Crai) no Hospital Materno Infantil Presidente Vargas, onde será realizada a entrevista. Lá a criança será ouvida sobre o crime que presenciou.
Quem faz a entrevista investigativa é outro perito, para que o trabalho seja isento. Mas o profissional com o qual ela já estabeleceu vínculo acompanha o depoimento, para que a criança se sinta mais confortável. Esse relato poderá servir como prova no processo relativo ao crime.
A Lei 13.431 de 2017 prevê que, sempre que possível, o depoimento especial seja realizado uma única vez. O depoimento precisa ser gravado em áudio e vídeo. Não é admitida a tomada de novo depoimento especial, ao menos que seja imprescindível e houver concordância da testemunha ou de seu representante.
Fonte: GZH / Por Fora das Pistas