Doda e Rodrigo Pessoa foram companheiros em cinco das seis Olimpíadas que cada um disputou, em incontáveis treinamentos, almoços, jantares e conversas de cocheira. Os dois maiores cavaleiros da história do hipismo brasileiro, porém, não se falam há quase quatro anos. Em quarentena em um haras no interior de São Paulo, Doda decidiu dar o primeiro passo para retomar contato. Enviou uma mensagem ao ex-melhor amigo na tentativa de deixar para trás as brigas do passado recente, em nome da forte amizade do passado agora distante. Deixou Rodrigo Pessoa à vontade para não responder. Não teve e não terá resposta.
Álvaro Affonso de Miranda Neto, o Doda, está com 47 anos e foi às últimas seis edições dos Jogos Olímpicos, mas não compete em alto nível praticamente desde a Rio-2016. Nas vezes que esteve em eventos internacionais desde então, cruzou com Rodrigo, filho do seu ex-treinador Nelson Pessoa, mas os dois evitaram trocar olhares. O clima é péssimo desde a última Olimpíada, quando Rodrigo recusou ser reserva da seleção brasileira e preferiu atuar como comentarista de uma televisão francesa.
No dia da final por equipes, os dois trocaram farpas pela imprensa. Primeiro Rodrigo comentou a desclassificação de Stephan Barcha, que ficou com a última vaga no time e foi eliminado por lesionar sua égua. “Eu sei que comigo não teria acontecido porque eu monto minha égua sem espora”, disse o campeão olímpico, tirando, porém, a culpa das costas de Barcha e colocando nas do técnico norte-americano George Morris. “Ele entrou como uma lenda e vai sair como uma lêndea”, atacou.
Acabada a prova com o Brasil em quinto, Doda falou com a imprensa e reagiu. “A experiência do Rodrigo não fez falta, porque com o cavalo que ele tinha iria fazer várias faltas. Não tinha nenhuma condição, nenhuma, nenhuma. Ele ia passar vergonha aqui. Um cara como ele, que é um craque, se não tiver um cavalo à altura, derrubaria os obstáculos aqui.”. Rodrigo ainda teve tempo de uma tréplica, alegando que Doda falava de cabeça quente: “Isso a gente nunca vai saber, porque não me deram a oportunidade de mostrar meu potencial.” Doda insistiu: “É como você pegar o Schumacher e colocar ele em uma equipe que não está boa.”
Desde então foram mais de três anos e meio sem nenhum contato. Partiu de Doda a iniciativa de propor a paz. “Não entrei no mérito de quem está certo ou erado. Eu perdi minha razão de ter falado aquilo no calor da competição. Ele fez um comentário e eu não fiquei feliz. E respondi de uma forma que não deveria fazer. Foi um péssimo exemplo que eu dei, que ele deu”, admite Doda.
Segundo ele, a convivência com Kaká, ex-jogador de futebol que será padrinho do seu segundo filho, previsto para nascer em agosto, o ajudou a ser mais humilde. “Tenho essa obrigação de ser um bom exemplo para minha filha, para meu filho que está a caminho, para meu esporte, para minha imagem. As pessoas acham que é um absurdo você admitir que errou. Tomo o Kaká como espelho. Você olha a humildade dele, a maneira que ele fala as coisas. Ele sempre valoriza o que as pessoas têm de bom. Como fiz aquilo no calor do negócio, aquilo me incomodou”.
Na mensagem de Whatsapp, escrita há cerca de duas semanas, quando Doda iniciava a quarentena no seu haras em Itatiba, no interior de São Paulo, o cavaleiro desejou tudo de melhor ao ex-amigo e demonstrou gratidão por tudo que os dois viveram juntos. A relação começou em 1993, quando Doda mudou-se para o centro de treinamento de Nelson Pessoa, o Neco, na Bélgica e virou não só companheiro de treinos, mas colega inseparável de Rodrigo, que é um ano mais velho. Eles eram jovens de 22 e 23 anos quando levaram o Brasil a uma histórica medalha de bronze por equipes na Olimpíada de Atlanta, em 1996.
Além de lembrar essa amizade, a mensagem avisava que Rodrigo deveria se sentir à vontade para responder, ou não. O campeão olímpico, que também está em quarentena, mas nos Estados Unidos, por enquanto não teve “cabeça” para responder. Mas em contato telefônico com o Olhar Olímpico, não se furtou em revelar que sentiu falta de uma palavra: um pedido de desculpas.
“Não é que ele pediu desculpas, e eu não espero isso também, mas não foi o que eu esperava. Para mim, infelizmente, não muda grande coisa. Ele falou coisas que ele achava importante para ele falar, sobre minha família, sobre a relação que a gente sempre teve. Nós éramos muito próximos, como irmãos praticamente. Vivíamos juntos, viajamos muitos, compartilhávamos muitas coisas. Se ele tivesse falado: ‘cometi um erro, aconteceu isso, isso e isso’, aí seguramente a gente poderia sentar e conversar sobre a situação. Como não foi o caso, para mim não muda nada. A atitude que ele tomou, ao meu ver, não foi justa.”
Cada um impedido de sair à rua em um canto do mundo, já chegando aos 50 anos, os dois ex-amigos têm um sonho em comum: disputar uma sétima Olimpíada, o que seria um novo recorde no esporte brasileiro — Robert Scheidt e Formiga também caminham para a sétima. Há pouco tempo, os objetivos eram outros. Rodrigo trabalhou até o ano passado como treinador da Irlanda, enquanto Doda passou por uma conturbada separação, voltou ao Brasil e teve que recomeçar.
Curou uma lesão no quadril, perdeu 14 quilos em três meses e malhou até o percentual de gordura do seu corpo cair para 8%. “Atingi agora a melhor forma física da minha vida. Estou magro, seco, me alimentando muito bem. Falta ritmo de concurso, mas estou melhorando. No meu último Grand Pix fiz zero pontos”, conta.
O objetivo era começar o ciclo olímpico de Paris-2024 voando, mas os planos mudaram com o mundo. “Comprei uma égua na Argentina e me surpreendi com o potencial dela. Na hora pensei: se tivesse mais um ano para a Olimpíada, eu arriscava. E agora tem. Não que ache legal esse adiamento. É uma catástrofe mundial, preferia esperar quatro anos, mas já que isso aconteceu, acorda minha motivação um pouco mais. Eu vou participar das seletivas”, avisa.
Rodrigo Pessoa será seu adversário. O cavaleio, que mudou-se da Bélgica para os arredores de Nova York, mas estava (e segue) na Flórida quando o coronavírus chegou, está com três cavalos “cinco estrelas” e animado. “Um deles estava machucado, mas já participou de eventos cinco estrelas. Agora vou ter mais tempo para me adaptar a ele. Agora é fazer um bom trabalho nesse ano e meio para se preparar da melhor forma possível, para agradar o técnico e eventualmente participar da Olimpíada”
A concorrência será forte. No Pan de Lima, o time com Marlon Zanotelli, Pedro Veniss, Rodrigo Lambre e Eduardo Menezes ganhou a medalha de ouro. Se, por ventura, os dois veteranos entrarem na equipe, aí eles devem conversar para tentar ter uma convivência sadia em nome de uma equipe que sempre defenderam com unhas e dentes. “Mas nunca mais vai ser a mesma coisa”, resume Rodrigo.
Fonte: uol.com.br